terça-feira, 22 de novembro de 2011

Tribuna do Norte | Berilo Wanderley

Tribuna do Norte Berilo Wanderley

quinta-feira, 21 de abril de 2011

A CARNE TRISTE DE BERILO WANDERLEY

Nasci a 21/4/34, nesta Natal, aldeiazinha boa para nela se morrer um dia. Infância comum, não fui de maneira nenhuma criança prodígio. Aluno Marista,  enfrentei uma educação literária aquém de medíocre, quando até o Conde de Afonso Celso me fizeram ler e um professor de Português me dizia que ter estilo era com Humberto de Campos. Quando me livrei desses senhores, tive a primeira sensação de que possuía algo de forte dentro de mim, e entrei a resistir ao que me cercava. De lá para cá, procuro fortalecer o meu desprezo pelo ontem para salvar o amanha. E algo assim como desespero e ambição. Formado em Direito, deram-me um diploma, que perdi dentro de um taxi em Madrid. Meu tempo espanhol foi marco inicial desta segunda etapa de minha vida, a primeira que realmente me interessa.
E vendo quanto o meio marca o espírito de um homem, de lá para , desde que voltei, procuro sair de Natal. Minha grande vitória será um dia sair de vez. Experimentei, no Direito, uma Promotoria Publica, onde me desencantei dele e dos homens que Ihe puxam as rédeas, montados sobre seu lombo. Atualmente faço jornalismo, o que, evidentemente, não se pode dizer, com seriedade, que exista na província. Mas é preciso ganhar dinheiro: o gim todo dia sobe de preço.
TN - Como seria sua autodefinição?
BW- Ficou dito muito na apresentação autobiográfica. Aos trinta anos, me pergunto: por que não acerto passe com os outros? O diabo é que não quero acertar. Considero minha inquietação existencial necessária para que eu não termine membro da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras ou Juiz de Direito de uma comarca do interior.
TN - Qual a ponto forte do seu caráter?
BW- Não temer o risco, o imponderável, quando se trata de buscar algo que, de repente, acho que devo buscar. Em Lispector, encontro a definição justa dessa coisa que eu amo: "O sagrado risco do acaso". E através dele que, um dia, "substituirei o destino pela probabilidade".
TN - Como encara o que já realizou em literatura?
BW - Nada realizei em literatura, até agora. Pelo menos, dentro do conceito que tenho de literatura. Fiz poemas, dez anos atrás, como todo mundo, e publiquei um livro como quase todo mundo. Hoje, olho para aquele Berilo e o chamo de imbecil. Mas outros, que até escreveram versos piores que eu, continuam suas guerras de guerrilhas contra a poesia e não se julgam imbecis. Problema deles. Quase dez anos de crônica diária na imprensa me deixaram essa qualidade positiva que utilizo em experimentos de ficção: a intimidade com a linguagem que, um dia, junto a uma técnica que busco, me levara a umas novelas que pense escrever. Por hora, em literatura, situo-me na posição bastante cômoda de espectador e leitor.
TN- Que valor atribui ao cinema?
BW - O cinema e a arte por excelência do homem cósmico. Para este, o cinema cada vez mais tende a tomar o lugar do romance, principal­mente quando consideramos a opinião de uma corrente de críticos literários que dão o romance como gênero extinto desde o fim da Segunda Guerra Mundial, ou pelo menos uma anomalia dentro do nosso tempo. Quer assim dizer que cabe, dia a dia, mais ao cinema, com seus Antonioni, Resnais, Trufaut, Kazan, a responsabilidade de descobrir, perscrutou possibilidades do Homem, observá-Io em suas misérias e grandezas, levar-Ihe mensagens que o animem a lutar contra os Senhores do Mundo e as iras do Tempo.
TN - Os livros fundamentais, na sua opinião?
BW - Livros fundamentais para mim são aqueles que, depois de lidos uma vez, ficam exigindo releituras, vez em quando, ou que marcam minha personalidade e minhas atitudes frente a vida e aos homens: "as Ensaios", de Montaigne, "Em Busca do Tempo Perdido", de Proust, "Moby Dick", de Melville, quatro ou cinco de Dostoievsky, tudo o que já Ii de Sartre.
TN - Faz-se literatura na província?
BW- Não, mas se faz-se, a que se faz o me interessa.
TN – É  necessário sair da proncia?
BW - É necessário para quem não tem a "Universidade do Grande Ponto" como fonte de enriquecimento do espírito e o casamento com dois casais de filhos, televisão e carrinho na porta como "ideal para uma existência completa".
TN - Por que ainda não saiu de Natal?
BW - Uma tentativa frustrada me fez botar de lado os caminhos inviáveis para sair daqui. Na segunda viagem, saberei por onde ir. Por enquanto, abro caminho.
TN - Como julga os possíveis inimigos?
BW - Tenho inimigos possíveis e impossíveis, mas são bem poucos. A uns e outros dão o generoso sentimento de igno-Ios. Não tenho vocação para totalitário: você pode gostar ou não gostar de mim. Mas também me de o direito de gostar ou não de você.
TN - 0 homem está como afirmou alguém, "duas doses abaixo do normal"?
BW - Não sei quem disse isso, mas certamente não será com quem irei conversar para aumentar minha crença no homem.
TN - Por que casou?
BW - Era uma vez um sujeito que amou uma mulher e que, numa certa tarde de sábado, resolveu casar-se, porque o amor persistia e a fórmula de união Sartre-Beauvoir mostra-se inviável para as nossas dimensões pequeno-burguesas. Hoje, com um ano de casado, continuo a gostar da mulher e acho o casamento coisa intolerável. Mas a ele só pego que não mate minhas ambições.
TN - Que desejo formula nessa etapa de sua vida?
BW - Sair de Natal.

segunda-feira, 14 de março de 2011

POEMA QUASE DESONESTO PARA UMA NOIVA


POEMA QUASE DESONESTO PARA UMA NOIVA 

Dentro daquela noite buliçosa,
você passou por mim como uma estrela,
das que rasgam o céu cheias de pressa,
passam correndo, mas deixando o rastro.
E me disseram, lá mesmo na festa
que você já é noiva. Que tem isso?
Há tantas noivas que não são honestas ...

Vá ver seu noivo, antes de mim, de tudo,
Dê-lhe a sua alma e dê-lhe o corpo, até.
Encha·lhe os dedos de carícias virgens
e seja dele as vezes que quiser.
Depois, venha me ver. Na última noite.
Quando seu corpo inda estiver saudável.
Há de encontrar aberta a minha porta,
que não se fecha, desde aquela festa.
Estou deitado, à espera dos seus passos...
(Ah! queira Deus você não seja honesta!...)

                                                        (BW)

quinta-feira, 3 de março de 2011

5 CRUZEIROS


5 CRUZEIROS

            - O senhor me dá outra nota, que essa eu não recebo não.
            - Por que é que não recebe?
            - A nota está muito velha e ninguém enxerga os números.
            - Ah, então você é cego. Porque eu vejo tudinho.
            - Olhe o senhor, até este pedaço está faltando.
            - Mas isto não empata de ler os números. Os números estão é aqui.
            O homem não queria se convencer que sua nota de cinco cru­zeiros estava mesmo sem jeito. Ao meu lado, no banco do ônibus, discutia e discutia, debruçando-se quase sobre mim, a ponto de me atrapalhar a visão e quase o fôlego. O condutor também era in­transigente e queria os dois cruzeiros da passagem.
            - Veja se tem dois cruzeiros miudos aí.
            - Não tenho, não, meu senhor. Se tivesse, não ia puxar esta nota de cinco.
            E ficaram naquela conversa. Palavra prá cá, palavra prá lá.
            Até que, não aguentando mais aquele homem teimoso debruçado para cima de mim, pedi-lhe a nota, rasguei-a em pedacinhos e disse-lhe:
           - Deixe que lhe pago a passagem.
           O que eu queria era acabar de vez com aquela zoada em ci­ma de mim. Sabem que não gosto de zoada. Se não sabem, fiquem sabendo agora, porque pode qualquer um de vocês que me lêem, um dia viajar comigo, em qualquer estrada da vida. Então não fa­ça zoada. Mas, voltando ao ônibus e seu passageiro teimoso. Quan­do tinha rasgado a nota e pago quatro cruzeiros, por mim e por ele, e já me julgava tranquilo, o tal homem bate-me no braço e diz:
           - O senhor está me devendo 3 cruzeiros.
           - 3 cruzeiros de que?
           - Ora, o senhor rasga meus 5 cruzeiros, paga 2 de minha
passagem. Cadê o troco?
           - Que troco? - perguntei já começando a querer acreditar na matemática do homem.
           - O troco dos meus 5!
           - Meu amigo, - tentei lhe explicar - eu quis lhe fazer um favor, porque aquela nota não prestava mais. O senhor é que podia me dever 2 cruzeiros. Mas, não deve nada.
           - Não deve nada o que? O senhor quer me enganar com 3 cruzeiros.
           Antes que o homem falasse alto e todo o ônibus soubesse que eu o queria "enganar com 3 cruzeiros", puxei miudos e lhe dei, convencido de que não dou mesmo nem para fazer caridade nem para matemática.
(BW)
COMO UM OLEIRO

             Invado a casa de Dorian Gray e, de repente, me vejo cercado de cores, cores e cores. São cores que se alastram pelo chão, sobem pelas paredes, avançam sobre nós, como a querer devorar-nos. São telas, são tapetes, são mosaicos, são murais enormes se agigantan­do sobre uma parede e que parecem querer rasga-la e ganhar a rua, o mundo.
              E ali é o mundo desse homem que vive em febre permanente de pintar, de traçar esboços, olhos voltados unicamente para as co­res de onde arranca a beleza que sua sensibilidade e seu talento fazem cada dia mais renovada. Me espanta a capacidade de reno­vacão sobre o que fez ontem desse inquieto pintor, que me acostumei a admirar numa amizade lenta e que vem de muitos anos. Me espanta descobrir cada vez que vejo um trabalho novo de Dorian Gray uma feição diferente uma experiência nova, que o faz nunca repetido sobre si mesmo. Agora mesmo, nesta visita que faço ao seu atelier, o pintor mostra-me umas pinturas sobre madeira, fei­tas com uma técnica que não sei exprimir nem repetir aqui, e que nem parecem ser do mesmo artista, que pintou aqueles quadros em volta.
              Ninguém vê Dorian Gray dispersando tempo, na rua. Vive na sua oficina, como um operário dedicado ao trabalho sob as ordens severas de um patrão severíssimo. Esse patrão que deve ser - só se explica assim - o amor confiante que tem da obra que faz. Es­se mesmo amor que leva um oleiro a permanecer de olhos vidra­dos na jarra que brota do barro que se molda nas suas mãos, en­quanto a roda da sua engrenagem gira e gira, a esquecer-se do mundo que grita, se transforma e se desmorona à sua volta.
               E a casa de Dorian, tem essa feição antiga de casa antiga, va­randas cheias de calma, jardins adormecidos ... Onde, parece, a gente está sempre vendo que - como diz o 'poeta Dorian Gray.­"humilde alguém se assenta a um canto e fica a escutar a música das árvores e a lua que chega" .
(BW) 

MEU RIO DE INFÂNCIA

MEU RIO DE INFÂNCIA

            Que amargura saber, eu distante, que o rio Santa Cruz corre violento por debaixo da ponte, cantando suas águas barrentas de encontro às pedras daquela serra que ele contorna, lambendo os barrancos das margens, carregando em seu dorso troncos de árvores enormes, corpos de bois pegados de surpresa no seu itinerário vertiginoso! Que tristeza, eu longe, sem poder ver do alto da ponte meu rio de infância, que me acostumei a amar, nas tardes de inverno, quando, vencendo as recriminações de minha mãe, corria pela estrada do trem, para vê-lo, enorme, do alto da minha pequenez, mais pequeno ainda pela minha inocência e meus olhos ainda não gastos, nas coisas amargas do mundo, sentindo pelo coração ainda não sofrido. Ah, meu rio Santa Cruz que as minhas calças curtas molhou!
             Ah, meu triste e revoltado rio em cujas águas meus lábios gastaram seus primeiros beijos! Ah, meu insatisfeito rio,onde descobri o primeiro símbolo do homem na vida, em querer avançar sem saber para onde nem como, mas altivo e otimista.
             E lembro e recordo na memória o cenário em volta. O Cabugi coberto pela chuva, a água escorrendo das vertentes dos serrotes, a molecada correndo em gritaria pelo campo descoberto, é lá adiante o açude se enchendo, onde as moças iam tomar banho, nuinhas, soltando gritos denunciadores de sexo em efervescência. E ninguém as molestava pois todos só ligavam para a chuva que caía. Ninguém, muito menos o menino de calças curtas que não lhes compreendia a beleza.
             O meu rio continuava resfolegando, fazendo suas águas doerem de encontro às rochas, como faz hoje doer o homem, distante da infância e de uma vida onde as borboletas e os pássaros é que me preocupavam. Hoje, tenho outro rio para olhar: esta vida em vertigem.
(BW)

OLHOS CLAROS


OLHOS CLAROS           

           Diante da janela antiga, ela passava com seus olhos claros. Hoje só essa coisa difícil é que recordo: seus olhos claros. Claros como o amor da primeira mulher que amei.  
Ela não foi nem a primeira nem a última: simplesmente não foi. Um dia olhei-a demoradamente, a tarde descambava mortiça e medíocre. Ela me respondeu com um olhar tão sereno, que tive ímpeto de lhe pedir perdão pelo meu. Não pedi.
            As tardes, naquelas tardes, eram lentas e usavam asas leves. E as tardes, todas as tardes, traziam a moça dos olhos claros. O que mais passava diante da janela era uma gente inútil, para quem nunca usei os meus olhos.
            Eu era ingênuo, imaginava tantas coisas puras, os dois juntos, eu e ela: correrias pelo pomar de nossa casa, seu rosto cansado inclinando-­se sobre meu ombro, eu terno como jamais fui na vida. E depois a caminharmos pela rua inclinada de calçamento torto que sempre foi um problema para a edilidade.
            Mas não guardo a rua, nem suas pedras tortas. Nem guardo sequer a lembrança da moça. Guardo essa coisa difícil: seus grandes, formidáveis, extraordinários olhos claros.
(BW)

O GATO E EU

           O GATO E EU

             Eu viajei com um gato, ou melhor, éramos três: eu, o gato e a senhora gorda. E foi num trem. Voltava eu, de alguns dias de bucolismo, na Fazenda Santa Cruz, que se deita sonolenta aos pés do Cabugi. Era um dia de trem calmo e, no vagão em que eu estava, quase ninguem havia. Eu, sozinho, no meu banco, dividindo a minha distraçao entre um romance de Eça de Queiroz e a mata crespa, que corria, célere, pelo retângulo da janela. Foi quando, em Baixa Verde, entrou aquela senhora enorme, de vestido encar­nado e renda na barra, com um pequeno saco, a boca feita em nó e uma cesta pequena. O saco ela jogou debaixo do banco. A cesta, acomodou-a sobre o assento, entre ela e eu. Resultado: nem mais paisagem, nem leitura. É certo que depois que o trem partiu procurei reconciliar-me com Eça. Mas, a mulher de Baixa Verde não sossegava, botando a cesta pra lá e pra cá. E eu já querendo saber o que diabo havia ali dentro. Uma toalha branca se cosia à  boca da cesta, escondendo um segredo que não me preocupou, até enquanto a mulher não se pôs a ter cuidado com ela.  
              Lá para as tantas, não sei o que a locomotiva viu diante do trilho, que estremeceu toda, espirrando fumaça e água quente. Com o sacolejo da máquina, o nosso vagão estrebuchou, meu livro caiu fora, a cesta da mulher virou e de dentro ... pulou um gato. Um gato preto que, depois de olhar assustado para a dona e para mim, saiu correndo por debaixo dos bancos. A dona do bicho pediu-me auxílio E por sua parte, a delicadeza humana pediu que eu atendesse. E saí com a matrona, procurando o gato, que já começava a me esquentar o sangue. Eu e a mulher. Os outros passageiros apenas olhavam, decerto porque não sabiam o que era delicadeza humana.
               Fui encontrar o bichano, escondido debaixo do último banco, lá no fim do carro. Agachei-me com os joelhos no chão, e meti o braço no escuro. O gato zangou-se e mandou-me um arranhão, de lembrança. A danada da mulher só sabia dizer: "Bichano, psiu, psiu ... " Ate que criei coragem e trouxe o gato. Agarrei o diabo preto, de bigodes enormes, olhos que só lembravam aquele seu irmão do conto de Edgar Poe. Voltei, com a mulher me olhando e quando estava a mete-lo na cesta, o bicho esquentou-se, desprendeu-se de minhas mãos e saltou a janela, ficando para trás, sozinho, na estrada.                  
               Aí, a mulher gorda danou-se. Imediatamente esqueceu minha ajuda (oh triste e inutil delicadeza humana!...) e cobrou-me cinquenta cruzeiros pela gato. Dei-Ihe vinte.
               E ainda dizem que gato preto não dá azar ...
(BW)

domingo, 27 de fevereiro de 2011

TOLEDO


TOLEDO, março de 61 - Aqui está, erguida sobre este cer­ro a cujos pés se deita o Tejo (que em terras espanholas e chamado Tajo), a "Imperial Toledo". Aqui está o mais heróico, o mais no­bre, o mais turbulento, o mais belo do passado histórico da Espa­nha. Hoje, cruza-se suas ruas estreitas e incertas, olha-se seu povo humilde e provinciano e a custo se quer acreditar na Toledo que foi. A Toledo que é, porque foi. Mas a fama militar e politica da cidade aparece, ainda, aos nossos olhos, em cada curva de esqui­na, em cada trecho de rua; são muralhas, são castelos, são tem­plos, são evocações da arte islâmica que hoje se faz espanto de tu­rista e orgulho humilde de uma gente simples.
            Conta a lenda que descendentes de Noé a fundaram, dois mil anos antes de Cristo. Então, era tranquila tanto quanto hoje. Mas depois, vieram os visigodos, que teve um rei chamado Leovigildo que fez da cidade, a sede da Monarquia. E mais depois, Tarik, um chefe árabe, a invadiu, e durante quase três séculos esteve subme­tida ao Califado de Córdoba. As guerras se sucediam, os monumentos de arte se edificavam, e o Tejo seguia, impassível e azul, lá em baixo, doendo-se ao golpe das patas de cavalos de toda a parte. Um dia, no A1cazar, 400 cabeças rolaram. De outra vez, veio um Governador que cultivava a arte refinada de não poupar donzelas. Nos seus mercados, eram estendidas as sedas vindas de Damasco, os tapetes da India, e outras tantas mercadorias trazidas de Alexandria, Ceilão ...
Um dia, houve a Reconquista. Alfonso VI entra na cidade, restabelece-lhe o título de "Primada de las Españas", domina a mouros e cristãos sob seu olhar, sem dúvida firme e forte. Entrou na cidade pela Porta Antiga de Visagra, que ali está, e por onde também há pouco entramos nós, sem alardes, claro, e sem preten­sões a dominar mouros. Essa Porta, estilo árabe do seculo IX, um dia viu pendida de suas pedras lá do alto a cabeça de um "wali" toledano. Hoje, tão simples, Toledo, com um povo que não quer evocar a sua história sangrenta de outrora. Alguns homens se ves­tem a maneira típica de séculos atrás, e cultivando o artesanato de armas e metais, na melhor tradição mourisca, nos falam, a nós estrangeiros que chegamos, com simpatia e delicadeza, negociando seu trabalho, de que vivem. No domingo, as lojas dessas mercado­rias turisticas não fecham, mas, o dono da casa encontra sempre um intervalo no trabalho para convidar o comprador a entrar e tomar com ele um bom copo de vinho tinto de Méntrida ou o branco de Yepes e Talavera. A mulher toledana é de uma graça que o cronista não sabe contar, nem se atreve. É simples como toda pro­vinciana e uma delas achei digna de um estar à margem do Tejo, aos pés da cidade, em hora de por-do-soI como aquele que vi, às 7 horas da tarde daquele domingo.
(BW) 

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

REDINHA, ARTIGO 3º


REDINHA, ARTIGO 3º
         
            A graça da semana passada foi à idéia de se mudar para mu­nicípio a Praia da Redinha. E a idéia partiu dos nossos deputados, como não poderia deixar de ser. Promovida a município, adeus simplicidade poética da Praia da Redinha. Vai ter que cumprir di­reitinho o artigo 3.° da Lei Orgânica dos Municípios. Isto é, vai ser obrigada a ter 10 mil habitantes, a ter uma receita tributária anual mínima de 50 mil cruzeiros, a ter sua Prefeiturazinha, seus ilustres vereadores, além de mercado, matadouro, açougue e cemi­tério. Muita responsabilidade para quem até hoje tem levado uma vida de praia despreocupada, lírica e honestamente.
           Os pescadores vão esquecer os peixes e já não procurarão as praieiras morenas, para contar-lhes lendas dengosas, mas para pe­dir-lhes votos, porque vão ser vereadores. E todos eles se despren­derão da espontaneidade que vestem, para fazerem discursos, me­tidos em camisas e gravatas que não lhes assentam. E esquecerão as modinhas e esquecerão as jangadas.
           Lá se vai embora a Redinha dos nossos sonhos! Vai burocra­tizar-se, vai meter-se a "noveau riche", sem poder. O pior é isso: que será tudo falso, antinatural.
           As ondas vão recuar de lá e vão jogar-se mar a dentro. E acompanhando as ondas, homens e mulheres que veraneavam, à sombra dos seus dezembros, repletos de cajus cheirosos e canto­rias de fandango e bumba-meu-boi, irão sossegar em outras praias, pois sentirão que a Redinha não será mais a de outrora. Com seus 10 mil habitantes, com sua receita tributária anual de 50 mil cru­zeiros para cima, com sua Prefeiturazinha e seus vereadores, en­chendo uma Câmara pequena de projetos desnecessários, tudo se­rá sem graça.
           A Redinha deve continuar é sendo praia. E com ela, os jan­gadeiros, as casinhas escassas, e os cobiçados cajueiros de dezem­bro. Prá que a Redinha com artigo 3.0? Prá que?
(BW)

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

PARIS

PARIS, 1º de janeiro - Esta que, em sonhos idos, julguei inacessível a mim, é agora este sonho palpável, este presente de ano novo que tenho nas mãos com jeito de quem não merece, en­cantado e nervoso. Desde que cheguei no dia 28, depois de uma atribulada viagem de trem onde um casal de velhos franceses se esmerou em gestos e palavras de má recepção, de donos de casa aborrecidos com a chegada da visita imprudente (recepção essa que tanto eu como meus amigos brasileiros concluímos por não aceitar), desde que cheguei, dizia, tenho sentido momentos em que me paro dentro de mim e provo das reações que o presente me proporciona e absorvo o gosto. É Paris para um namorado antigo como eu, que por motivos alheios ao amor, passou tantos anos de conversa de portão, sem poder ver realizado o casamento o que está feito agora.
            Poderia contar tudo em forma de diário, registrando as emoções de cada hora. Emoções simples de péssimo turista, mas de óti­mo amante. Não é que eu odeio os turistas, não. Até os acho a eles todos umas perfeitas crianças. Que dizem com jeito peculiar: "Que beleza!" diante da Torre Eiffel, com a mesma expressão de um garoto que segura nas mãos o brinquedo sonhado por trás da vitrine da loja. Mas prefiro o não-compromisso do diário.
             Desço pelas ruas de Saint Germain de Prés. Neste bairro me hospedo, num Quartier Latin, onde, negros de rostos ameaçadores vivem a discutir a questão argelina, vez ou outra bem ao meu lado, na mesa onde tomo um vinho ou no "metrô" em que viajo por de­baixo de boulevares e do próprio Sena. Por enquanto a chuva miú­da. Depois ela vai e o frio é que permanece. Um conhaque me alenta e saio andando. "Andar, andar, que um poeta não necessi­ta de casa". Sempre dei fé ao verso de Cecília Meireles.
            Vou procurando certos lugares que me trouxeram a Paris e encontro coisas e seres que só Paris possui, relutantemente, turisticamente. Assim é que ao sair da Catedral de Notre Dame, onde o sagrado de Deus se une ao sagrado da arte dos homens, caio nas garras do vendedor de fotos pornográficas. Achou-me com cara de estrangeiro e, ai de mim, de lúbrico. Para eu entender o francês tem que ser falado devagar, e o homem me fala às carreiras naturalmente com medo do gendarme que possa querer jogar-lhe a lei nos ombros. Tento fugir ao homem, mesmo porque não sou aluno de internato para emocionar-me com fotos pornográficas. Enfim consigo e saio na chuva. Outros vendedores iriam encontrar, depois. 
            Sem a chuva, o sol não vem de preguiçoso que é. Estou agora à ponta desta calçada, nesta mesa, cercado de alguns brasileiros: João Luiz, Helena, Lúcia, Dinorah, Aluízio. Eles conversam não sei o que. Um ou outro se sente turista. Outras mesas, outras ca­deiras, outros seres, pela calçada. Uma dessas calçadas líricas de bar que Paris sabe ter, guardando uma poesia especial, que Recife já imita bem e que já aconselhei tanto, e em vão, até agora, ao meu caro Múcio Miranda; conselho de quem quer uma "Cisne" cada vez mais simpática.
            Tomo um gole de cerveja, o que não é novidade. Aquele su­jeito de barba, ali de frente, também toma a sua. A vantagem dele sobre mim é que está com uma francesa e eu não estou. Também, tem muita graça! Paris, além de me deixar entrar, ainda me dar mulher! Estaria eu do jeito daquele visitante que na casa de um amigo, á hora do lanche, disse que com a marmelada e o quei­jo, desejava, também, "se não fosse muito incômodo", a filha bo­nita da casa. Mas lhes falava do sujeito de barba. Lê um livro, dá um beijo na companheira, e muito sério, torna a ler o livro. Vez por outra, entre as duas leituras, toma um gole de cerveja, em vez do beijo. E nessas alterações fico à espera de uma confusão, como por exemplo, que ele beije o livro, leia a cerveja e beba a mulher. O que, felizmente, não acontece; mas a crônica de Paris afirma que já aconteceu. E eu acredito.
(BW)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

LEMBRANDO BERILO - Rubens Lemos Filho

LEMBRANDO BERILO          

             Faltava um mês para eu completar nove anos. Ao chegar à escola, regras ditadas por freiras rígidas, que enfileiravam alunos e expulsavam inadimplentes em nome de Jesus Cristo, os amigos estavam todos juntos, aos lamentos: “Rubens, morreu o pai de Milena Wanderley”.
            Incrível a proibição de não se chamar os alunos pelo apelido. Eu era, como até hoje sou, aos 40 anos, conhecido muito mais por Rubinho em função de Rubão, meu falecido pai. No colégio das freiras, eu era Rubens e tinha que ser Rubens.
Se houvesse outro Rubens na sala de aula, elas não exageravam como os locutores de rádio de muito outrora, que batizavam por exemplo, Alfredo Primeiro e Alfredo Segundo. Seríamos Rubens Silva e Rubens Lemos ou Rubens Filho, que era, certamente, para não confundir com o meu pai ou o do homônimo colegial.
Depois dos meus rodeios, provocados pelas explicações justas, retorno ao primeiro parágrafo. Naquele julho de 1979 eu já sabia que o pai de Milena Wanderley, uma aluna loirinha mais nova que eu, havia morrido. A notícia fora dada aos prantos pelo meu pai. Muito amigo dele, que se chamava Berilo Wanderley, poeta, professor e jornalista. Ultimamente andavam bebendo muito juntos.
Suas viúvas se tratam feito irmãs até hoje, Isolda, minha mãe, Maria Emília, mulher de Berilo. Gosto  de Rômulo, Henrique, o Poetinha e Alexandre, os três filhos homens que seguem a vida com  a dignidade herdada. Milena mora na Suécia.
Papai, que era um inventivo, um ciumento agresssivo e possessivo dos amigos, resolveu  que os sábados de Berilo eram ao seu lado e o apresentara a uma novidade boêmia de Natal, o Café Nice, um boteco no Alecrim onde se tocava e cantava MPB de qualidade e sambas que falavam em amores e desilusões. Papai e Berilo chegaram a compor um samba, gravado recentemente pelo meu irmão, Camilo.
Então a notícia da morte de Berilo me assustou, aos oito anos de idade, por ver o meu pai, pela primeira vez, chorar como uma criança, rosto coberto pelas mãos, num pranto doloroso e assustador. Eu era pequeno e naquele tempo a morte não aparecia tanto. Berilo Wanderley virou uma lenda para mim.
Sempre que visito o seu túmulo, no Cemitério do Alecrim, a algumas quadras de onde repousam os restos do meu pai, paro e leio o poema perfeito em que ele narra a própria decomposição, numa beleza que nada tem a ver com a tragédia funeral. É uma declaração de amor para Maria Emília.
Berilo Wanderley foi o copidesque de vários bons repórteres de Natal. Era preciso saber escrever bem para que ele pudesse publicar um texto de alguém. Naquele tempo, dominar as palavras  era padrão de competência. Com papai, foram do Diário de Natal ainda na Avenida Rio Branco.
Faziam reportagens a pé. Numa delas, Berilo foi ao Beco da Lama, pelo início da década de 1970 e escreveu um texto impecável, uma aula de jornalismo de ambiente, esquecido na pressa em nome da qual se assassina o idioma pátrio. Achei na internet e relembro Berilo Wanderley que me reaparece num momento oportuno, como se me vingasse daquelas freiras carrancudas. E curasse todas as feridas invisíveis.
(Rubens Lemos Filho)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

LEMBRAÇAS DE BERILO - Luiz Carlos Guimarães

           

               Lembro Berilo Wanderley, os passos apressados, o riso de mansidão, o olhar a ver as coisas por dentro, a eloquente linguagem dos gestos a dar novo colorido à palavra. A madrugada e os passarinhos de seu jardim o acordavam para a crônica diária. O tema constante foi a cidade e seus habitantes. Na maioria personagens anônimos do cotidiano, humildes, sem horizontes, deserdados da esperaça. Na leveza de seu estilo, nimbava-os de poesia, ironia e ternura, e na revelação de seu mundo revelava o amor por Natal, a sua musa inspiradora. Em fogo brando que dura mais que a chama da paixão, sem altear a voz, talvez por timidez, como a sussurrar um segredo de bem-querer à mulher amada. Berilo Wanderley escreveu com sua vida uma canção de amor a cidade do Natal.
             (Luiz Carlos Guimarães)

AS VIZINHAS

AS VIZINHAS

            Acordei com uma vontade de conversar com todo mundo, de sorrir com todos e de dizer coisas engraçadas. Ao abrir a janela do quarto, que se escancara para um pomar cheio de frutos e de pássaros, gozei toda a alegria da manhã, que vinha doce e terna, como uma canção cantada por uma mulher bonita, de manhã cedo. Mas, não havia moça, nem bonita, nem feia, cantando nessa manhã. A vizinha ainda estava de janelas fechadas e, decerto, nem sentia a força do sol batendo num abraço quente, sobre o seu quarto. Como ninguém cantava e os passarinhos de todas as manhãs não vieram soltar seus madrigais nos verdes do pomar, pensei em assobiar qualquer coisa. Lembrei-me de uma valsa velha que minha mãe me ensinara há muitos anos, e assobiei. Já depois, saía pela rua, à procura da fila de ônibus, e me encontro com a velhinha magra e baixa. Mora perto de minha casa, e sua casinha também é igual a ela: baixa e magra.
            - Como vai, moço, com sua felicidade? - perguntou-me a boa velha, sorrindo santamente.
            A pergunta mansa da vizinha antiga deu-me uma vontade danada de dizer que ia bem, coma felicidade. Porque eu vou bem, mas sem ela. Ir bem com a felicidade já é ter muito. E quem sou eu, moço de olhos pobres e coração amável, para poder encontrar felicidade, como muita gente encon­tra, em toda esquina? Já me conforta ir bem e poder responder sorrindo a boa velha, e cantar de manhã cedo quando os canários não cantam, em meu pomar. Continuo andando e, na esquina, a moça que varre a calçada, de chinelos e vestido aberto na cintura, num desleixo matinal que Deus perdoa, olha para mim, vira o beiço e diz achar que estou engordando. Sorrio e paro, um instante, para lhe dar "bom-dia". Ela escora-se à vassoura e me confessa que está triste, nessa manhã. A primeira tristeza que encontro e logo perto de casa. Mau, muito mau. Não quero entristecer por causa da tristeza da moça de cintura aberta. Quando ela fala que brigou com o noivo, na noite anterior, tranqüilizo-me, porque sei que o noivo volta. E saio, conformando-a:
            - Não se aperreie por isso, menina. Seu noivo voltará. Nem que seja para fechar-lhe a cintura.
            Ela deu um muxoxo e voltou a varrer a calçada. E eu vou varrendo da lembrança a tristeza da moça, tão desnecessária nessa manhã e continuo andando, sentindo remorso de não ter mentido à velha. Eu devia ter dito que a felicidade ia comigo. Não custava nada ter dito.
(BW) 

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

NO LARANJAL

Nos pés do laranjal adormecido.
Com todos os mil diabos, onde li isto? É de uma canção popular ou de um bom poeta antigo? O certo é que esse decassílabo não é meu. Acabo de ver um laranjal, frondoso e inundado de um cheiro bom e ácido, e o verso me veio à lembrança.
Então, que fique o decassílabo, seja de quem for, e o que mais eu vi. Laranjas gordas e amarelas. Seios quarentões. Aqui e ali, uma laranja no chão, com jeito de cansada e cheia de oferecimentos como certos seios se dão. Em um galho do laranjal, mais para um canto do quintal, dois pássaros. Um conversa com o outro. Vou me aproximando com jeito, para não espantá­-los. Quero reconhecê-los e dar aos dois um cordial bom-dia.
Mais para o fundo do quintal, lá junto ao muro, onde um pequeno córrego canta suas águas tranqüilas, uma moça lava umas roupas e canta uma canção qualquer. As moças já não mais existem, estão todas nascendo mulheres, cheias de sabenças do mundo que as moças de antigamente não sabiam. Aquela acolá deve ser uma moça diferente. Canta e lava roupa, à margem de um córrego manso, cercado de um laranjal.
            Chamem depressa um poeta para cantar esse quadro!
            Volto depois de apanhar três ou quatro laranjas maduras do chão, que logo estou partindo com uma faca de agudo corte, abrindo em gomos amarelos. Seios partidos. Maduros e partidos.
            Duas doses de cachaça fazem o resto da manhã.
(BW)

ANDORINHAS



ANDORINHAS

Andorinhas! andorinhas!
lamenta! vosso poeta!...
Tendes asas, tendes canto.
Minhas asas são quebradas
e o meu canto não têm eco ...

Por que cantais, tanto, tanto?
Alguma andorinha nova,
trazida por vosso canto,
ao vosso bando chegou? ...
Uma andorinha perdida,
que se perdeu nesta vida
e o vosso bando deixou? ...

Andorinhas! andorinhas!
minha noiva foi-se embora
e até hoje não voltou ...

Andorinhas! andorinhas!
Encontrareis vossa noiva.
Procurai-a pelo azul.
Talvez esteja no norte,
talvez esteja no sul...

Andorinhas! andorinhas!
lamentai vosso poeta! ...
Ah! como eu canto, andorinhas!
procurando a minha amada ...

E as minhas asas quebradas? ...
E as minhas asas quebradas? ..
 (BW)