segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

BERILO - Newton Navarro


BERILO

            Não pude vê-Io. Tanto Maria Emilia o protegia da morte, que ela não aceitava levá-lo assim tão brutalmente em pleno alvorecer do dia.
            Temia a visão dos outros, dos muitos presentes aquela hora, como se nossos olhos pudessem tomá-Io, de todo, dos seus olhos somente. Agarrava-se, assim, ao barco, ao madeirame, com todas as energias e as amarras do amor, nessas horas tão fortes quanto o próprio amor verdadeiro, igual aquele de que estava mais do que nunca possuída. Prendia-se alma e corpo aquele barco estranho, escuro, embora coberto de crepe e flores coloridas, que logo mais levaria seu Poeta para a ilha estresonhada, quem sabe, de há quanto? O rosto macilento e chorado ocultava o outro rosto frio do Capitão de longo curso de Poesia e Amor, que Iogo mais partiria para as ter­ras do nunca mais, embora ela soubesse que em breve o barco teria de partir e mãos amigas, desronhecidas, talvez o empur­rariam para um singrar em águas azul cinzentas, onde a Poesia seria desde logo o misterioso farol da sua aventura como fora sempre em vida a sua norma de seguir. Maria protegia Berilo com aquele medo terrível que as grandes tragédias revelam. Menos o medo em si, que os grandes mortais temem, e mais o mis­terioso vago vazio, solitário tempo de vida que além da fronteira ardente da morte que o amante atravessou. Não que­ria sabê-Io perdido, a viajar dentro em pouco para longe de si, dos filhos, da casa, da cidade. Não sabia ainda com­preender nada daquilo tudo que a cercava: o pranto lento de todos, aquelas flores, aque­las tochas a recender ainda mais a vida e morte do seu Poeta, sobretudo o olhar es­pantado dos filhos diante da­quela nau de espanto, ancora­da diante de uma cruz, onde um homem chagado e com­passivo olhava em silêncio de bronze todo aquele drama. E o choro quase velado da mãe, e sua desolação e funda mágoa que poucos percebiam? Só, ela, a Mãe na dor maior quando outra vez, arrancavam de si o filho, como já uma vez outrora, levaram-no de vez de seu morno e doce seio para as claridades de um mundo nem sempre feliz e claro.
           Assim, nao pude ver o que­rido e velho primo-amigo. Cantor maior da minha Cidade, simples e bom, um franciscano quase perfeito, em busca mais do "absoluto" - como tão bem escreveu Sanderson do que do imediatismo das coisas fúteis que fazem os artifícios, as vaidades, o viver desses dias de desditas, mais ainda sem ele, agora mais pobre pela sua ausência.
           E foi melhor não parar por um instante os meus olhos molhados diante do seu rosto. Sei que para isso fomos feitos como diz o Poeta maior "para olhar a face da morte", sim, mas a brutalidade do golpe não dava tréguas para esse ofício mais do que qualquer outro, de puro misticismo, de lenta oração, de demorada meditação frente à escultura da morte. Ali não. Ali, somente o silêncio ou a fuga. Ou o quase não conformar-se. E por isso saí de perto daquele barco ancorado ainda por instantes no chão que tanto amara e a que dedicara amor somente comparável ao esposo admirá­vel e ao Pai excelente que foi.
         Saí, Berilo estava sob a proteção de Maria Emília e as preces molhadas de Maria Amélia. Mais longe, os fi­Ihos. - Sua alegria sempre, indagavam quem sabe, a ra­zão daquilo tudo, aquele barco escuro, aqueles olhos entre atônicos e lacrimosos que cercavam seu Pai dor­mindo. Por que não o dei­xavam descansar? Por que não deixavam que somente sua Mãe embalasse Painho naquele sono tão fecundo de lembran­ças, saudades, reminiscên­cias? Saí não sei para olhar o quê. Salete me sustinha o pranto, palavra, atitudes. A tarde estava clara. Poucas nuvens, e junto a capela, um flamboyant luminoso clareava, com mil fogachos bem rubros o velório do Poeta. Não, não assistiria a sua partida. Queria-­o nas antigas alegrias que espa­Ihara em palavra, canto, gestos. Sua eterna presença de alegria. A viva inteligência, sua bagagem de conhecimentos que como "estrangeiro" carre­gava pelas "gares" do mundo. O seu conversar, cantante. Seu modo todo seu de dizer coisas que um misto de poesia e sátira enfeitavam.
           Saí, simplesmente. Não vi bem nada ao derredor. Não me vi. Passei andando entre pas­sos e casas. Pronunciava pala­vras do meu coração, somente. E lembrava um não sei quê lembrando sempre enquanto meu velho amigo, aquele audaz moço do trapézio vlante que de capitão, agora de misteriosas aventuras, ganha­ria. Dentro em breve, os lon­gos rumos da sua ilha baudelairiana. Assim, fui saindo, como saio desta crôni­ca, que não sei como comecei nem como termi...
(Newton Navarro)

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