domingo, 23 de janeiro de 2011

O CANTO DO CISNE

          O CANTO DO CISNE

             O Bar e Confeitaria Cisne, uma tradição e uma legenda na vida boêmia e na paisagem humana de Natal, fechou suas portas, definitivamente. Apagaram-se as suas luzes foscas, como um pal­co que desce a cortina ao fim do último ato. Só faltou virem ao procênio os irmãos Miranda - Múcio, Ademar e Rossini - para receber as palmas dos últimos boêmios, remanescentes de uma confraria fraterna que povoou, durante trinta anos, aquele espaço, proseando e tomando cerveja, alegrando o coração, esquecendo mágoas, que, como as águas passadas, não movem moinho de nin­guém.

            A confeitaria enfeitava a fachada. Os três Miranda se desmanchando em cortesia e frases bonitas, no atendimento às senho­ras e às crianças que chegavam à procura de doces, caramelos e salames. No segundo estágio do estabelecimento, vinha o bar, em contraponto. Onde se movimentaram as figuras joviais de Luizi­nho, Doublecheque, Albimar Marinho, maestro Alcides Cicco, Newton Navarro ainda o artista quanto jovem, o poeta Evaristo de Souza. Quase todos são fantasmas a sobrevoar a solidão do espa­ço vazio, neste final de abril, cantando em réquiem para o Bar Cisne.

             Zé Américo, o garçom bojudo e cordial, se desmanchando para a clientela que era como que sua família, sentando, vez em quando, na mesa, de um ou de outro, para tomar um solidário co­po de cerveja. O maestro Cicco chegava, voz de tenor, pedia uma champanha, e esnobava, triunfalmente. Albimar Marinho repetia um trecho de fandango, que sabia de cor, como os passos que en­cenava através das mesas. E havia o freguês que, vez em quando, rompia de dentro de um jipe de aluguel (era o início dos anos 50), pagava adiantado a "corrida" até sua casa ao chofer conhecido, entrava no bar embriagava-se de frisante. 

             Depois que se foram, vai agora o Bar Cisne. Vai ceder lugar ao que chamam de progresso, isto é, um bloco de cimento armado com vigas de ferro que dará muito mais dinheiro ao dono do chão. Os irmãos Miranda não vão abrir outro bar em parte alguma, pa­ra que o cisne, cheio de saudade, nunca mais cante, nem sozinho nade, nem nade nunca ao lado de outro cisne.

(BW)

Um comentário:

  1. Lembro-me bem da Confeitaria Cisne e dos irmãos Miranda.
    Lá existiam as únicas coxinhas de galinha da cidade, à época. O bolinho de bacalhau era uma verdadeira deli (katessen).

    No final da década de 50 eu estudava no Instituto Raymunda Queiroz (era com 'y' mesmo), uma escola na Rua Professor Zuza, um pouco antes do antigo Hotel Samburá de quem vem da Princesa Isabel.

    Então, como eu morava na praia de Areia Preta e a fome era grande àquela altura do campeonato (quase meio dia) e eu dispunha de transporte apenas para vir pra escola, as 7:30 da manhã; voltava a pé, pois, o longo trajeto do Grande Ponto até aquela praia.
    Então, muito espertamente, antes de sair da escola, tirava uma página do caderno e escrevia um bilhete como se fosse meu pai. E escrevia com minha letra ainda infantil:
    "Prezado Múcio, queira despachar ao meu 'herdeiro' uma coxinha de galinha e um bolinho de bacalhau, e bote na minha conta. Abraço, Eugenio Netto”.

    Assim lá ia eu morrendo de fome - e de medo de passar uma vergonha, um vexame caso fosse recusado. Então, muito timidamente entregava o bilhete que eu mesmo fizera. Isto com idade de 7, 8 anos.
    Jamais eles deixaram de atender.
    Pelo resto do ano eu usei aquele artifício, arteiro qu'eu era, até que minha avó, usando de muita astúcia descobriu porque era que eu não tinha nenhum apetite para o almoço...

    E por mais de 40 anos eu estive convencido de que realmente imitava a letra e a assinatura de papai muito bem.
    Ledo engano: muitos anos mais tarde, dois dos irmãos Miranda já falecidos, eu fui com minha mulher, final dos anos oitenta, comprar alguns arranjos para o aniversário de nosso filho que completava 10 anos em uma loja de presentes e artigos de aniversário que uma amiga da mulher tinha recomendado, lá na Rua Gonçalves Ledo, na Cidade Alta.
    E qual a minha surpresa, na imensa loja, muito sortida, o Sr Ademar Miranda, o único remanescente dos proprietários e "mestres de cerimônias" da lendária confeitaria.

    Então, enquanto minha mulher escolhia as bugigangas e os penduricalhos acessórios para o aniversário eu perguntei ao Sr Ademar se ele lembrava quando eu ia lá com um bilhetinho de papai para ele me despachar as coxinhas e os bolinhos.
    Ele disse que se lembrava, sim.
    Aí, eu, a pensar que lhe estava contando uma grande novidade confessei que os bilhetinhos era eu mesmo quem escrevia. E ele: "E você acha que a gente não sabia não, é?

    Dávamos boas risadas quando apresentamos pro seu pai as contas-bilhetinhos no fim do mês. Sabíamos que vc devia vir com fome aquela hora do colégio; e sabíamos por outro lado que o seu pai pagaria. Portanto...

    A partir daquele dia, eu que já admirava os irmãos Miranda, passei a querer bem a eles, a sentir verdadeiro amor pelos três, isto é, pela memória dos dois já falecidos, e o que eu ainda recordava deles; e a 'Seu' Ademar, ali, velhinho, curtido nas voltas que o ponteiro do relógio dá, sempre trabalhador e dedicado. Em outro ramo de negócio, mas com a mesma postura, o mesmo amor e zelo.
    E agora, ali, na minha frente a revelar aquele lance quase perdido na memória, pedaço de um acontecimento ido na lembrança e na constatação de que o tempo não para, cada vez mais a separarmo-nos da nossa essência e origem.

    Lembro-me bem da Confeitaria Cisne e dos irmãos Miranda.
    “E que deus os tenha guardado", como dizia Mestre Cascudo.

    Maurílio S. Eugenio.
    Natal, 10 de janeiro de 2012.

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